Uma morte anunciada

Benazir Bhutto tinha perfeita consciência do perigo que corria ao regressar ao Paquistão nesta altura. E sabia como iria ser difícil sobreviver a uma campanha política num país cada vez mais encurralado entre os militares e o fanatismo islâmico. Mesmo assim, voltou. Porque Bhutto também tinha percebido que esta seria a grande (última?!) oportunidade para tentar recuperar o seu poder político e derrotar o general Pervez Musharraf e os militares que a obrigaram ao exílio.
Envolvida pelos milhares de seguidores do Partido Popular do Paquistão, recebida em apoteose, principalmente em Carachi, cidade mais populosa, capital económica do país, berço da sua dinastia política e centro do poder secular que tem perdido influência nos destinos do país desde o golpe de Estado, Bhutto estava mais vulnerável no norte do país.
E acabou por ser em Rawalpindi, considerada a cidade mais segura do Paquistão, centro do poder castrense que comanda os destinos de uma sociedade fortemente militarizada desde a criação do país depois da desagregação do império britânico da Índia em 1947, que Bhutto não resistiu às balas de um suicida que depois de disparar a sua arma se fez explodir no meio da multidão.
Em qualquer outro país de tradição militar, um atentado contra uma individualidade tão importante na cidade bastião das forças uniformizadas poderia ser entendido como uma profunda humilhação. Tal não acontece no Paquistão. E tal não acontece por duas razões muito simples.
Apesar de ter prontamente condenado o atentado, o Presidente Pervez Musharraf só retira benefícios de mais este incidente sangrento. Não só se livra de um dos vultos políticos que poderia pôr em causa o seu poder (o próximo alvo a abater chama-se Nawaz Sharif, que também já regressou do exílio), como tem mais uma nova oportunidade para exibir a sua mão de ferro contra os extremistas religiosos do país e agradar ao seu grande aliado norte-americano que começava a sentir-se extremamente incomodado pelos imbróglios políticos paquistaneses.
Além disso, poucos acreditam que neste atentado não houve colaboração dos militares. Mesmo que não directamente, pelo menos por inércia. Já no atentado que causou mais de uma centena de mortos na sua chegada ao Paquistão em Outubro, depois de nove anos de exílio, Bhutto tinha apontado o dedo à falta de empenho dos militares em garantir a segurança da sua caravana e dos seus apoiantes.
A relação íntima entre os serviços secretos paquistaneses e os talibãs afegãos é conhecida e está provada. O seu surgimento, fortalecimento e apoio durante os anos 90 nunca teria sido possível sem o Paquistão e o regime militar paquistanês. Em Outubro, devido às pressões internas e externas, Pervez Musharraf resolveu entregar a chefia do Estado-Maior ao general Ashfaq Kiyani, curiosamente alguém que foi chefe dos serviços secretos e do X Corpo do exército situado em Rawalpindi. Quem quiser que retire as suas conclusões.
Quanto a Benazir Bhutto, cumpre com a sua morte a tradição familiar. A mais importante dinastia política paquistanesa (o pai, Zulfiqar Ali Bhutto, primeiro-ministro nos anos 70, chefiou um dos poucos governos sem influência militar na história do país) é também aquela com destino mais negro: Zulfiqar foi enforcado pela ditadura militar em 1979, dois irmãos de Benazir foram assassinados depois.

* Estive no Paquistão e no Afeganistão no começo da campanha militar lançada pelos Estados Unidos depois do 11 de Setembro e entrevistei Benazir Bhutto posteriormente em Lisboa.